Gratuidade injusta

É incrível como alguns assuntos são recorrentes e voltam a assombrar a população todos os anos, como se fosse um filme reprisado por falta de coisa melhor nas prateleiras.

Assim é com as enchentes, a falta de chuva, a violência urbana, os hospitais lotados, bla, bla, bla.

Um deles, a tarifa de ônibus.

Ligou-me um jornal eletrônico perguntando para quanto eu achava que iria a tarifa, se ultrapassaria os 3 reais e assim adiante.

Claro que não sei. Para saber, precisaria entrar na chamada caixa preta do sistema de transporte coletivo e verificar as planilhas (as verdadeiras, claro), os gastos de combustível, material de limpeza, pneus, folhas de pagamento, tributos, remuneração de diretores, montante do Fundo para Melhoria do Transporte (se é que tem e se é que houve depósito).

Como esses dados não estão abertos ao público, que se contenta, ano após ano, com migalhas de informação, nem a Prefeitura é capaz (ou tem coragem) de mostrar à população.

Enquanto isso, o que há de prático é o seguinte.

A tarifa é cara porque há um imenso, um despropositado, um pornográfico gasto com gratuidades de estudantes, de carteiros, de policiais, de bombeiros, de idosos, de doadores de sangue que pesam sobre a tarifa que é paga pelos demais usuários.

Eu sempre disse que empresário e Município nada perdem, não têm prejuízo com as gratuidades, pois é a Maria, o Zé, o Paulo, a Izabel, gente simples e sem privilégios, que pagam essa imensa conta, por uma simples razão: eles precisam do transporte e não podem deixar de comprar (ou carregar) seus bilhetes.

Repito: Izabel, Zé, Maria, Paulo, Joana pagam com seu salário mínimo as viagens dos filhos e netos de vereadores, deputados, bancários, advogados, gente que absolutamente não precisa dessa gratuidade, ainda menos sob o sacrifício de trabalhadores comuns.
Quando a Prefeitura e os políticos deixarem o conforto de seus gabinetes com ar condicionado e examinarem com honestidade e sensibilidade a questão das gratuidades, conferindo o benefício somente a quem realmente dele precisa (como já fazem em Curitiba, Goiânia, Fortaleza, etc.), a tarifa baixará substancialmente e aliviará a situação dos mais humildes.

Então, vamos estimular esse debate, ao invés de ficar lamentando o aumento de tarifa que, certamente, virá sobre nosso lombo.

Em tempo: não ando de ônibus mas adquiro passes para meus empregados de casa e do escritório.

Zezinho e os lobos

Venho prestando homenagens constantes a Thomas Hobbes, que enfatizava ser o homem lobo do homem. Na sua esteira, vieram Montesquieu, sem falar em Maquiavel, para quem o homem não tem mesmo conserto ou ajuste em sua maldade natural.

Em alguns artigos, eu disse que o homem ainda pode descer muito mais em sua gradação de crueldade. Pensava, na época, num pai que introduziu centenas de agulhas no corpo de seu filhinho.  Ou nos saqueadores de casas abandonadas pelas enchentes.

Um policial amigo contou-me que uma boliviana abriu o cadáver do pequeno filho, encheu de cocaína e rumou para uma grande capital, onde pessoas bem aquinhoadas pela sorte, aparentando ser normal, esperavam pela entrega da droga.

Não tive coragem de perguntar se o bebê morreu de causa natural.

Mas há, na periferia ou mesmo nos grandes centros, diárias manifestações de maldade natural, onde o ser humano não é diferente do pior dos animais.

Há uma tendência para o mal que não escolhe rico, pobre, escala social e nem mesmo respeita grupos religiosos que, presume-se, deveriam ser dotados de bondade com sinal de ligação com Deus.

Na casinha simples, de um bairro longínquo de Campo Grande, acomoda-se (porque o verbo viver não se pode aplicar àquela concentração de fome, sofrimento, doença e desespero) uma família esquecida por Deus.

Digo por Deus, pois o dia todo aquele casebre é frequentadíssimo por moradores da região que, se não entram em fila, pelo menos mantêm uma incrivelmente bem organizada agenda.

A razão de tanto ajuntamento é Zezinho, um menino de no máximo 14 anos, portador da Síndrome de Down, a quem a maliciosa criatividade e o engenho da vizinhança conferiu tal status de utilidade que confirma tudo o que foi dito acima por Hobbes e Maquiavel.

Para quem se apressou em identificar nessa visitação um comando bíblico (“estive nu e me vestistes, doente e me visitastes”), digo que que a família é, sim, evangélica, dessas que passam a madrugada procurando milagres na TV.

Mas, ao contrário do mandamento bíblico, Zezinho é usado pelos vizinhos para prover viagens grátis nos ônibus, onde o acompanhante do deficiente não paga.  Não-raro, o útil Zezinho faz duas ou três viagens ao centro da cidade.

– No Natal ele chegou a fazer cinco viagens! – orgulha-se a mãe.

Suarento, cansado, amarrotado de sacolejar nos coletivos, Zezinho mal chega em casa, toma um copo dágua e lá vem um outro vizinho levá-lo ao passeio utilitário.  Anda tanto servindo aos vizinhos safados que, ao invés de ser usado como muleta e, frequentemente carregar pacotes, poderia cobrar como guia turístico.

Perguntei, apenas por perguntar, já que a pobreza da vizinhança não justificava tal hipótese, se Zezinho ganhava alguma coisa, algum trocado, algum remédio, para ser tão usado pelos vizinhos.

– De vez em quando, me dão  um picolé – responde o próprio Zezinho, com as dificuldades naturais de sua enfermidade.

Saí pensando que essa história confirma: o homem é lobo do homem e, deixado por sua própria conta, sem leis ou sanções, é capaz de maldades que ainda não somos capazes de descrever.